Este artigo trata-se de um trabalho acadêmico cuja republicação é garantida pela Lei de acesso a informação. Pelo teor do texto e interesse a todos os festivaleiros e entusiastas, trouxemos para cá. Curtam e espalhem
Festivais da canção: um fenômeno global
Song festivals: a global phenomenon
Festivales de la canción: um fenómeno global
Festivais da canção: um fenômeno global
HISTÓRIA DEBATES E TENDÊNCIAS, vol. 22, núm. 2, pp. 143-155, 2022
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo
Recepção: 30 Novembro 2021
Aprovação: 21 Maio 2022
Publicado: 04 Julho 2022
Resumo:Os festivais da canção têm fundamental importância no que concerne a música popular produzida no mundo todo. Surgidos na década de 1950 eles se propagaram em nível global a partir da década seguinte e contribuíram com o aparecimento de um panteão de novos talentos que, em grande parte, ainda hoje constituem o que há de melhor na música internacional. Tendo como precursor o Festival italiano de San Remo, seguido pelo Festival Eurovisão da Canção, os festivais auxiliaram na unificação das nações e, fazendo competir diferentes países, passaram a representar e fortalecer as identidades nacionais, atrelando-se ainda, intrinsecamente, ao desenvolvimento dos meios de comunicação, por serem festivais televisivos.
Palavras-chave:festivais da canção, globalização, música popular.
Abstract:The Song Festivals are of fundamental importance when it comes to popular music produced all over the world. Emerging in the 1950s, they spread globally from the following decade and contributed to the emergence of a pantheon of new talents that, to a large extent, still constitute the best of international music today. Having as a precursor the Italian Festival of San Remo, followed by the Eurovision Song Contest, the festivals helped in the unification of nations and, making different countries compete, began to represent and strengthen national identities, also intrinsically linking to the development of media, as they are television festivals.
Keywords:Song Festivals, globalization, popular music..
Resumen:Los festivales de la canción son de fundamental importancia cuando se trata de música popular producida en todo el mundo. Surgidos en la década de 1950, se difundieron globalmente a partir de la década siguiente y contribuyeron al surgimiento de un panteón de nuevos talentos que, en gran medida, siguen constituyendo lo mejor de la música internacional en la actualidad. Teniendo como precursor el Festival Italiano de San Remo, seguido del Festival de la Canción de Eurovisión, los festivales ayudaron en la unificación de naciones y, haciendo competir a diferentes países, comenzaron a representar y fortalecer las identidades nacionales, vinculándose también intrínsecamente al desarrollo de los medios de comunicación, ya que son festivales de televisión.
Palabras clave:festivales de la canción, globalización, musica popular..
Considerações iniciais
A globalização é resultado das interações entre pessoas de diferentes lugares, regiões e países. Caso procurássemos remontar às suas origens poderíamos voltar ao início da humanidade, à formação das primeiras civilizações, aos conflitos e conquistas de territórios e continentes, no que se confundiria com a História do Mundo (World History) e com outras correntes como as Histórias Cruzadas, as Histórias Compartilhadas, as Histórias Conectadas, a História Transnacional e outras (MONTEIRO, 2016).
Patrick O’Brien, um dos precursores destes estudos, define a globalização como “a inter-relação entre processos geopolíticos, políticos, sociais, econômicos, religiosos e culturais”, dividindo este processo, que “corre como um fio através da história”, em estágios heurísticos, sendo eles: (a) globalização arcaica: que abrange os séculos desde a Antiguidade até a conquista de Ceuta, pelos portugueses, em 1415; (b) proto globalização: que inicia com as grandes navegações marítimas europeias e vai até a Segunda Revolução Industrial, no século XIX; (c) globalização moderna (1846-1948): marcada pela formação de uma sociedade industrial e pelas relações comerciais de caráter cosmopolita; (d) globalização contemporânea: a partir de 1948 e até os dias atuais (O’BRIEN, 2018, pp. 247-248).
No campo acadêmico, o interesse pela História Global ganha força durante a década de 1980, dedicando-se a temas contemporâneos, especialmente relacionados ao capitalismo, tomando também de empréstimo conceitos como Estado-nação e temas da História Mundo, relacionados ao contexto da História Antiga e Moderna, atrelando-se, neste aspecto, ao conceito de “longa duração” proposto por Fernand Braudel (BRAUDEL, 2009). A História Global auxilia na compreensão das macro-estruturas, das corporações multinacionais, organizações em nível mundial, ao mesmo tempo em que pode se associar à Micro-História, permitindo o cruzamento entre as perspectivas macro e micro (REVEL, 2010).
Nos anos 2000, os estudos da História Global tiveram uma guinada com o aparecimento de publicações especializadas como o Journal of Global History, pela London School of Economics, em conjunto com a Cambridge University Press, a partir de 2006, e a New Global Studies Journal, revista publicada pela editora alemã De Gruyter Publishers. Esta última passa a valorizar a interdisciplinaridade e os fatos ocorridos após a Segunda Guerra Mundial, momento em que se fortalece uma maior consciência global no contexto europeu, o que ocasiona o surgimento de órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização do Atlântico Norte (OTAN), o Fundo Monetário Internacional (FMI), além dos blocos econômicos e “diversos outros órgãos que tratam de questões globais como fome, guerra, meio ambiente, mulher, infância, desenvolvimento, comércio, etc.” (MONTEIRO, 2016, n.p.).
A História Global possibilita a abordagem de uma variada gama temática: guerras, acordos econômicos, eventos de entretenimento, epidemias, migrações, meios de comunicação, novas tecnologias; são alguns dos temas desta agenda, que procura semelhanças e diferenças em padrões culturais de nível global, permitindo a observação de aspectos do processo globalizador.
Neste processo, pode ocorrer fortalecimento ou fragmentação do nacionalismo e das identidades nacionais, de acordo com as inter-relações resultantes entre culturas dominantes e dominadas, bem como o cruzamento e hibridismo entre elas. Podemos ainda apontar na direção de um “nivelamento cultural”, decorrente de imposições das nações dominantes, que tendem a uniformizar o plano cultural, em nível mundial, por meio da suplantação de culturas regionais dominadas. Neste caso: “São exemplos disso os estrangeirismos linguísticos, as mudanças na alimentação (leia-se fast-food), moda, vestuário e gostos (musical, por exemplo – rock, pop), etc.” (MONTEIRO, 2016, n.p.). Em contrapartida, essas imposições podem reforçar sentimentos nacionalistas e uma autodefesa, que servem de resistência ao processo de dominação, exclusão ou mesmo de extinção, neste aspecto poderíamos falar em “contraglobalização” (BURKE, 2003, p. 104). Em caso de hibridação entre uma cultura global e uma local, por exemplo, ainda se usa o termo “glocal” (global + local).
Embora seja preferido pela História Global o método indutivo, no qual os preceitos mais gerais caminham para as questões mais particulares, também podemos partir da ordem inversa, iniciando por casos específicos e compreendendo como eles tomam proporções globais. É por esta última via que poderíamos entender a proliferação dos festivais da canção pelo mundo, que têm no Festival italiano de San Remo o seu precursor, criando um modelo que seria seguido por países do mundo todo, tornando-se uma prática comum a partir década de 1950 e chegando até os nossos dias.
Festivais da canção e globalidade: alguns debates
Quando falamos em “festivais da canção”, nomeadamente, estamos nos referindo aos festivais de caráter competitivo e de âmbito televisivo, ou seja, os festivais de música onde concorrem diferentes canções, muitas vezes de diferentes países e que são gravados, produzidos e/ou realizados por emissoras de TV e transmitidos via televisão. Mais propriamente falamos de festivais de música popular, uma música que encontra nos mass media o seu meio de difusão e, talvez mais do que isso, encontra neles a origem e razão de ser, na medida que sua criação representa os interesses comerciais vinculados aos meios de comunicação e visa atingir as massas, como preconiza Theodor Adorno (1986) ao conceituar a “popular music”.
Esse tipo de canção produzida nos festivais, que intenciona apenas agradar o público no intuito de vencer os certames, ganha, no Brasil, o nome de “música de festival”, se assemelhando às “canções carnavalescas”, ou seja, canções feitas apenas para um evento, ou para uma determinada época do ano, perdendo depois a sua validade, como bem evidencia Chico Buarque, em entrevista encontrada no filme Uma Noite em 67 (que retrata o Festival da TV Record de 1967)ii. Em um quadro mais amplo podemos destacar também as canções samremenses e eurovisivas. Quanto a este último tipo, já bastante estudado (RAYKOFF; TOBIN, 2007, p. xix), um outro filme, Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga [Festival Eurovisão da Canção: A História do Fire Saga] (2020)iii, demonstra cômica e ironicamente o superficialismo, o comercialismo e o jogo de interesses que precede as canções dos festivais, em especial aqui, do Festival Eurovisão da Canção, hoje um dos espetáculos com maior audiência no planeta e um dos mais longevos. De forma alguma isso faz com que o festival perca a sua importância. Segundo Nuno Galopim, “o Festival da Eurovisão ajuda-nos a contar a história politica do Velho Continente” e não só isso, “tal como acontece com a história política, também a evolução das grandes mudanças na sociedade e nos comportamentos está refletida num concurso que, naturalmente, acaba igualmente por espelhar os ventos que foram alterando as tendências do gosto da música popular.” (GALOPIM, 2018, p. 16).
Os festivais da canção se defrontam com tudo aquilo que pertence ao campo musical – interpretação, composição, instrumentação, performance, letras, ritmos, gêneros musicais -, um grande problema, entretanto, que há muito se tem enfrentado, é a internacionalização, ou universalização, musical. Trata-se de uma propagação de gêneros e ritmos, via de regra, difundidos a partir de países desenvolvidos, que se apresentam como dominantes no plano cultural e tendem, como assinalamos antes, a uma suplantação das especificidades regionais. O que se configura é uma relação entre “dominantes” e “dominados”, uma subalternização em que culturas dominantes se favorecem de processos de internacionalização que, em geral, vem acompanhados de questões econômicas e empresariais, uniformizando a cultura de acordo com o seu modelo e estabelecendo padrões, que eliminam as diferenças e as especificidades locais.
De forma alguma, no entanto, falar em internacionalismo seria falar exclusivamente nessas relações predatórias que implicam no domínio de uma cultura sobre outra ou na subalternização cultural. Raymond Williams, por exemplo, nos fala da antítese que se forma entre nacionalismo, como “busca egoísta dos interesses de uma nação contra os de outras”, e internacionalismo, entendido como “cooperação entre as nações” (WILLIAMS, 2007, pp. 286-287). Esse encontro e cooperação entre as nações, embora se relacione com o processo de globalização, poderia desencadear um outro processo, a “mundialização” (ORTIZ, 2003), um patamar final nas inter-relações globais, que consistiria numa integração última entre as nações (pax mundi) (MONTEIRO, 2016), cabendo ai compartilhar dos mesmos elementos ou manter suas identidades regionais e nacionais.
Uma outra via permite às culturas dominadas assimilar a cultura dominante e hibridizá-la, ressignificá-la, reordená-la, de acordo com as suas realidades locais. Este é o princípio que norteia a world music, em que, aproximando-se do conceito de “glocal”, fundem-se elementos locais e globais, em geral, representados pela cultura dominada e pela cultura dominante, respectivamente. Poderíamos falar também em um total rechaço da cultura dominante, em um afastamento e na resistência conseguida com um maior enraizamento na cultura local. E é claro que pode ocorrer uma apropriação de elementos locais por parte de uma cultura internacionalizada, atraída pela diferença, pelo exótico, elevando o resultado desta hidridação a um nível extra-nacional ou global, ou ainda, podemos destacar, uma assimilação inversa da cultura dominada por parte dos grupos dominantes, como ocorre na intelligentsia brasileira, que recorre à tradição indígena como sinônimo de pureza, consciência ambiental, etc. (SEEGER, 1997, p. 482) e que na música é comum e frequente. É bom salientar que mesmo neste caso não se atingiria a “pureza total”, pois os que se apropriam da cultura nativa não pertencem de fato a ela e estão impregnados de resíduos, recursos e instrumentos que destoam ou os afastam da fonte original.
Na década de 1980, houve tentativas de resgatar a música indígena e a língua tupi como forma de representatividade da mais pura tradição brasileira e sul-americana, em festivais da canção. Mira Ira (Nação Mel) (Lula Barbosa/ Vanderley de Castro), interpretada por Miriam Mirah, acompanhada por Lula Barbosa e pelos grupos Tarancón e Placa Luminosa, ficou com o segundo lugar no Festival dos Festivais, em 1985, resgatando uma musicalidade indígena e hibridando-a com música brasileira, latina e pop, utilizando instrumentos tradicionais indígenas (maracás, flauta pã, apito), junto com tambores, sopros, instrumentos elétricos e outros recursos, como o talkbox. A letra, intencionando o multilinguismo, inicia com o verso “Mira num olhar”, com a palavra “Mira” tendo correspondência tanto no português, quanto no espanhol e no tupi, no qual significa “gente”. A letra procura, portanto, mostrar integração entre os povos, mas a referência ao povo tupi é direta: “Mira ira/ Raça tupi/ Matas/ Florestas/ Brasil; e a última estrofe é toda na língua tupi: “Anana ira/ Mira ira Anana Tupi/ Anana ira Anana ira/ Mira ira [Nação mel/ Gente mel, nação tupi/ Nação mel, nação mel/ Gente mel]”.
O idioma também pode servir como forma de resistência e representação de uma identidade. Um dos casos mais notáveis e conhecidos foi o que ocorreu no Festival Eurovisão de 1968, em Londres, para o qual o selecionado espanhol era Joan Manuel Serrat, mas que se resignou em participar do festival se não pudesse interpretar a canção em seu idioma de origem, o catalão. O regime franquista não concedeu essa permissão e Manuel Serrat se recusou a competir, dando lugar à jovem Massiel que venceu o Festival Eurovisão daquele ano, levando o certame do ano seguinte para Madri.
Falamos no Eurovisão como um certame, logo, requer competição, e nele o idioma foi frequentemente utilizado como forma de obter vantagem em relação aos outros concorrentes. O inglês de tornou uma “língua universal” e também no Eurovisão passou a ser a melhor escolha para a conquista de votos do público-espectador, sobre o que já discutimos (MONTEIRO, 2015b). Inicialmente o francês era a língua preferida para este festival, mas, especialmente depois da vitória do ABBA, em 1974, com Waterloo, a maioria dos países começou a preferir o inglês como idioma para as suas canções, na tentativa de angariar mais votos e obter a vitória. A situação levou os organizadores a estabelecer uma regra em que os países concorrentes deveriam apresentar as canções apenas em um dos seus idiomas oficiais, mas a regra foi esquecida e o inglês passou a ser o idioma preferido “devido justamente ao interesse de conquistar um maior público e, consequentemente, mais votos”, apesar de alguns países continuarem preferindo “misturar o inglês e/ou outros idiomas à suas línguas nativas ou mesmo utilizar apenas sua língua oficial.” (MONTEIRO, 2015b, p. 133).
Curioso notarmos que o idioma também pode servir como representação identitária mesmo quando todo o resto é assimilado de outra cultura. É o caso do rock na maioria dos países em que este gênero musical de origem anglo-saxã plantou raízes. O ritmo, a instrumentação, o ethos, de uma forma geral, é todo representativo do rock, de uma cultura estrangeira, mas, geralmente, o idioma utilizado é o nacional. Assim se configura o rock brasileiro, o rock argentino, o rock português, etc., e apenas a garantia do idioma já basta para que se legitime uma identidade nacional – exceto por alguns traços musicais que, as vezes, se fundem à matriz estrangeira. No Brasil, muito semelhante caso ocorreu no cinema das décadas de 1950 e 1960, em que, nos adverte Renato Ortiz, os que defendiam um cinema autenticamente brasileiro “privilegiaram a problemática da língua, da fala nacional, como forma de se contrapor ao cinema estrangeiro, ao processo de ‘alienação cultural’ pelo qual passava o país”. “Diziam eles que, para encontrarmos nosso Ser, era necessário voltarmos para o idioma nacional, fonte inequívoca de nossa autenticidade.” (ORTIZ, 2006, pp. 168-169).
Os festivais da canção e sua propagação pelo mundo
Os festivais da canção surgem no pós-Segunda Guerra como sinalizadores de uma série de mudanças pela qual passou a sociedade europeia. Agregando os muitos países que foram divididos pelas acirradas disputas durante os dois conflitos mundiais, demarcando a passagem de uma mentalidade autoritária (como a dos regimes que ascenderam na primeira metade do século XX) para um pensamento moderno e liberal e transferindo ainda o domínio dos meios de comunicação do rádio para a televisão.
O primeiro festival da canção surgido nos moldes dos quais conhecemos hoje, inequivocamente, é o Festival de San Remo, que é apresentado primeiro como um programa radiofônico e só depois televisivo. A ideia foi do italiano Amilcare Rambaldi, um florista que lutou na Segunda Guerra e fez parte de uma comissão encarregada de administrar e dar nova vida ao Cassino de San Remo, depois de terminados os conflitos. Animado, já em 1945 Rambaldi fez um extenso relatório com propostas para atuações em áreas diversas, como desfile de moda, torneio de bridge, festival de cinema e até um conservatório de música, além, é claro, de um festival italiano de canções.
A proposta inicialmente não foi aceita, mas, dois anos depois, Amilcare conhece o radialista Angelo Nizza, que integrava a assessoria de imprensa do Cassino. Nizza intercede por Rambaldi junto à administração, agora privada, do Cassino de San Remo e, alguns anos depois, consegue a aprovação para que se realize, no luxuoso salão de festas do Cassino, a primeira edição do Festival della Canzone Italiana, que teve lugar nos dias 20 e 21 de janeiro de 1951.
O festival da canção italiano, como dissemos, foi primeiramente um programa de rádio, transmitido pela RAI (Radio Audizioni Itália, depois Radiotelevisione Italiana), que substituiu a EIAR (Ente Italiano Audizioni Radiofoniche), amplamente utilizada pelo fascismo na Itália. Em 1954, entretanto, uma outra grande modificação acontece, pois com o inicio das emissões televisivas no país, o Festival de San Remo passa a ser televisionado, consolidando definitivamente o formato dos festivais da canção como conhecemos hoje.
Essa fabulosa ideia unificou o país e serviu para colaborar com a reconstrução da Itália no pós-guerra, fortalecendo sua identidade nacional, promovendo o turismo na cidade litorânea de San Remo e criando um novo tipo de música – a “canção samremense” -, comercial, massificada, mas moderna e com qualidade capaz de competir com a já mundialmente difundida chanson française e com a cada vez mais crescente música norte-americana.
Vendo que um festival da canção foi capaz de unificar e reestruturar um país, como no caso da Itália, porque não se pensar em uma forma de unir os muitos países europeus em uma competição musical, colaborando para pôr fim na desagregação resultante de duas guerras mundiais que abalaram o continente. Com este princípio que, em 1956, foi criado o Grande Prêmio Eurovisão da Canção Europeia (Grand Prix Eurovision de la Chanson Européene), depois chamado Festival Eurovisão da Canção (Eurovision Song Contest – ESC), realizado pela primeira vez no Teatro Kursaal, em Lugano, na Suiça.
O Festival Eurovisão da Canção foi concebido pela União Europeia de Radiodifusão (UER) (European Broadcasting Union – EBU), inicialmente chamada Eurovision – daí o nome do festival – criada em 1950, com o intuito de unir e organizar as emissoras de televisão que surgiam no continente europeu. O festival de música foi idealizado por um comitê, liderado por Marcel Bezençon, tornando-se o primeiro do gênero a fazer competir diferentes países.
Um dos maiores entusiastas do festival europeu, o apresentador britânico Terry Wogan, acredita que o evento seja “uma ideia verdadeiramente maravilhosa”. Segundo ele: “Como alguém pode imaginar que um júri turco pode julgar uma música sueca? Como é que um croata pode avaliar um fado português? Agora, se todos cantaram em inglês … aí está a dificuldade.” (WOGAN apud GAMBACCINI, 1998, p. 07-08, tradução nossa).
No momento em que se consolidava uma maior consciência a nível global, evidenciada com a formação da ONU, da OTAN, do FMI, como mencionamos, surge o Festival Eurovisão da Canção, como um veículo de união entre os países. Tratava-se de um projeto audacioso, que logo provocaria debates “acerca das fronteiras e identidades”, mas que se destacaria pela “partilha de conteúdos e de meio de comunicação entre países, através de narrativas sobre a soberania e a cultura, dirigidas a uma audiência internacional.” (MANGORRINHA, 2015, p. 11-10). Sobre o surgimento e os aspectos tomados pelo Festival Eurovisão nos falam Ivan Raykoff e Robert Deam Tobin:
O Eurovisão, fundado quando a Europa estava similarmente remodelando-se no rescaldo da II Guerra Mundial, fornece um contexto para reexaminar a definição de ‘Europa’ e as noções de identidade no novo século. A modernidade caracteriza o ideal da Europa pós-guerra para a qual o Festival Eurovisão da Canção fornece acesso literal e figurativo: uma sociedade que seja democrática, capitalista, amante da paz, multicultural, sexualmente liberada e tecnologicamente avançada (RAYKOFF; TOBIN, 2007, p. xviii, tradução nossa).
É inegável a relevância do eurofestival na política agregadora que desencadeou a formação destas inúmeras entidades e organizações que visavam a regulação e unificação, primeiro do continente europeu, depois de todos os países do mundo. Em 1957, surge a Comunidade Econômica Europeia (CEE), que se tornaria um dos pilares da União Europeia (UE), criada em 1992. Os seis países fundadores da CEE (nomeadamente, França, Itália, República Federal Alemã, Bélgica, Holanda e Luxemburgo), junto com a Suíça, foram os participantes do primeiro Festival Eurovisão da Canção, em 1956. Os mesmos sete países também são os fundadores da UER (O’CONNOR, 2010, p. 08), e a Suíça, vencedora da primeira edição com a canção Refrain, interpretada por Lys Assia, era – e ainda é – a sede da UER, como também foi a primeira sede da ONU, da qual permanece como sede europeia.
Devido ao pouco número de pessoas que possuíam aparelhos de TV, este primeiro Festival Eurovisão também se caracterizou mais como um programa de rádio, com algumas outras excepcionalidades. Cada um dos sete países pôde apresentar duas canções (o que não voltou a ocorrer em outras edições) e essas canções não poderiam ultrapassar os três minutos de duração. A edição seguinte foi realizada na Alemanha, pois a regra não permitia que, mesmo vencendo, um país sediasse duas edições seguidas do festival – o que foi mudado já a partir do ano seguinte. Obstante, um a um os países europeus foram criando suas seleções nacionais com o intuito de competir no festival europeu, o que culminou no início da proliferação dos festivais.
Os festivais despertaram o interesse de países no mundo todo, no entanto, as divergências fizeram com que o modelo fosse copiado, mas adaptado às diferentes realidades, como no caso do Festival Intervisão da Canção, começado em 1977, iniciativa semelhante à do Festival Eurovisão, mas adequada para competição entre os países do bloco soviético, e depois todos os países comunistas. Com o fim da União Soviética, a Rússia passou a competir regularmente no Eurovisão, embora tenha se esboçado tentativas de retomar o Intervisão.
Tempos depois, ainda que de modo bastante indefinido, a União Ásio-Pacífico de Radiodifusão (Asia-Pacific Broadcasting Union – ABU) daria início a iniciativas equivalentes – também por meio de negociações com a UER – criando, por exemplo, o Festival ABU da Canção (ABU TV Song Festival), para competirem países do contexto asiáticos, mas adiado muitas vezes e passando para o controle de instituições privadas.
Devemos destacar ainda o festival realizado pela OTI (Organização de Televisão Iberoamericana, depois chamada Organização das Telecomunicações Ibero-americanas), também congênere da UER, mas, como o nome evidencia, voltada para quadro ibero-americano. Essa organização realizou entre 1972 e 2000 o Festival OTI da Canção (ou Festival da Canção Ibero-Americana), que foi precedido pelas edições de 1969 e 1970 do Festival da Canção Latina, sediado na Cidade do México.
Incontáveis outros festivais também serviram de palco para a concorrência entre países, dentre estes, em sua maioria iniciados na década de 1960, destacam-se: o Festival de Split, na Croácia, o Festival de Sopot, na Polônia, o Festival de Brasov, na Romênia, a Olimpíada da Canção de Atenas, na Grécia, Festival da Canção Mediterrânea, na Espanha, o Festival de Tokyo, no Japão, o Festival de Luanda, em Angola, o Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro, no Brasil, o Festival de Viña del Mar, no Chile, dentre muitos outros, grande parte deles descontinuados. Poderíamos ainda mencionar os festivais de caráter estritamente nacional e outros apenas regionais, ou ainda os festivais não-competitivos, o que estenderia enormemente a lista.
Considerações finais
Vemos que os festivais desenvolvidos a partir do surgimento do Festival de San Remo propagaram-se pelo mundo. Esses festivais, competitivos e de caráter televisivo, surgem com o propósito de unificar e dar novo ânimo às nações europeias, ainda com as consequências de duas guerras mundiais. Os festivais da canção passam a representar uma sociedade que se reestruturava e defendia novos valores, no intuito de englobar e agregar, pessoas e países, a despeito das diferenças existentes.
Inserido que está na lógica de uma indústria cultural, no percurso seguido pelos festivais em seu processo de difusão em nível global, eles passam a atender a interesses comercias, empresariais, mercadológicos, orientados pelas gravadoras e emissoras de TV, que detêm os seus direitos, meios para a sua realização e fazem a promoção destes eventos e dos artistas que a eles pertencem. Os festivais também assimilam modismos e tendências, com vistas a atrair e conquistar o público, além de elaborar canções exclusivamente com esta mesma finalidade, o que se confunde com o paradigma da “música de festival”, como vimos.
Obstante, os festivais da canção sempre foram reflexo da sociedade contemporânea e pós-moderna, que encontra na pluralidade e multiculturalismo alguns de seus pontos fulcrais, o que é favorecido pela grandiosidade e variedade oferecida por estes eventos. Enquanto espaço democrático e de cooperação, os festivais abrigaram e fizeram coexistir realidades diversas e adversas, o que Michel Foucault chama de ‘heterotopias’, aquilo que “consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários sítios, que por si só seriam incompatíveis.” (FOUCAULT, 1986, p. 03). Nos festivais, algumas vezes isso foi conflitante e até danoso – como em casos de xenofobia e terrorismo, e.g. -, mas permitiu que servissem como porta-vozes para inúmeras reivindicações, de natureza varia, seja política, religiosa, étnico-racial, etária, de gênero, regional, e.o. Segundo Anaïs Fléchet, “os festivais tiveram um papel de destaque no processo de globalização, favoreceram as transferências culturais entre diversas áreas culturais e definiram um lugar para a formação de uma cultura jovem, em ruptura com a ordem estabelecida” (FLÉCHET, 2011, p. 261).
Não raro os festivais prestam-se ainda como laboratório e montra para novidades técnicas e tecnológicas, mantendo estreita relação também com outras artes (plásticas, teatro, cinema, dança, moda) e questões ligadas à administração pública, diplomacia e turismo. O que faz estes eventos entrarem na ordem do dia quando pensamos em inter-relações entre diferentes regiões e países, como se procurou demonstrar ao longo do texto.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W.. Sobre música popular. In: COHN, Gabriel (org.); FERNANDES, Florestan (coord.). Theodor Adorno. Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1986, p. 115-146.
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. A Longa Duração. In: Escritos sobre a História. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2009, p. 41-78.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2003.
FLÉCHET, Anaïs. Por uma história transnacional dos festivais de música popular: Música, contracultura e transferências culturais nas décadas de 1960 e 1970. Patrimônio e Memória, Assis: UNESP-FCLAs-CEDAP, vol. 7, nº 1, jun. 2011, p. 257-271.
FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Diacritcs, vol. 16, nº 1, primavera de 1986. Tradução de Pedro Moura.
GALOPIM, Nuno. Eurovisão: Dos Abba a Salvador Sobral: Canções que contam a história da Europa. Prefácio de Salvador Sobral. Prólogo de Nuno Artur Silva. Lisboa: Esfera dos Livros, 2018.
GAMBACCINI, Paul (et al.). The Complete Eurovision Song Contest Companion. London: Pavilion Books, 1998.
MANGORRINHA, Jorge. A Cultura Eurovisiva: Canções, Política, Identidades e o Caso Português. Lisboa: IECCPMA, CLEPUL, 2015.
MONTEIRO, José Fernando S.. História Global e Festivais da Canção: Brasil e Portugal. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH-SC, 28, 2015, Florianópolis. Anais [Eletrônico]. Florianópolis: UFSC, 2015a, p. 1-15. Disponível em: <http://www.snh2015.anpuh.org/site/anaiscomplementares> Acesso em: 20. 11. 2015.
__________. Festival Eurovisão da Canção: 60 anos: Multiculturalismo, diversidade e alteridade. Veredas da História, [online],vol. 8, nº 1, 2015b, pp. 121-139
__________. História Global: Desenvolvimento e ligações. In: SANTOS, Amanda Basílio (org.). Fazendo História: Algumas ferramentas dos historiadores. [e-book]. Pelotas: Edição do autor, 2016, n.p.
O’BRIEN, Patrick. História Global para uma cidadania global. Revista Em Perspectiva, Fortaleza: UFC, vol. 4, nº 1, 2018, pp. 242-164. Tradução: José Fernando S. Monteiro.
O’CONNOR, J. K. The Eurovision Song Contest: The Official History. London: Carlton Books, 2010.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003.
RAYKOFF, Ivan; TOBIN, Robert Deam. A Song for Europe: Popular Music and Politics in the Eurovision Song Contest. Hampshire: Ashgate, 2007.
REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: O que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, vol. 15, nº 45, set.-dez. 2010, pp. 434-590.
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.
Notas: